terça-feira, setembro 21, 2010
O balanço da rede
sexta-feira, setembro 10, 2010
O ninho do tigre
1) A velha entra na sala mancando, a perna carcomida exalando o cheiro de sempre, cheiro de pronto-socorro, de pedaço que morreu e não avisou o dono. Modelo completo: diabetes, hipertensão, tabagismo, obesidade, colesterol, e "só dois dedinhos de cachaça no almoço" por 50 anos. -Dói a perna há 6 meses, não tem um remédio? - Mão na testa, olho no relógio, faltam 10 horas de plantão. O dia-a-dia de hospital é isso, uma impotência, um eterno “sinto muito, seu corpo está em frangalhos e não temos o que fazer”. Fico me sentindo um homeopata, porém honesto. Pra que serve medicina então?
O que salva vidas não é o atendimento médico de urgência. Aquilo é bacia das almas, quebra galho pra meia dúzia de mal-aventurados, pra quem muitas vezes não há o que fazer, realmente. O que não se pode subestimar é o valor da ciência de saúde humana, nisto incluindo médicos, químicos, físicos, etc. Esta ciência sim mudou completamente nosso modo e expectativa de vida, norteando os padrões de habitação, alimentação, higiene e atividade física, além de intervenções diretas, como as vacinações e programas de saúde preventiva. Mas ainda há uma barreira entre a realidade dos meios de saúde e a concepção popular do médico e do hospital. É isso que precisa mudar. A senhora-tigre que chegou andando na primeira linha deveria ter uma noção geral de como as doenças crônicas que enumerei vão estragar seu corpo sem que ela sinta quase nada, e depois do estrago nenhum remedinho irá de fato remediar a situação.
A saúde é mal distribuída, sim. Mas mesmo com um batalhão de médicos não se poderia seguir esperando o povo ficar doente pra vir nos 15 minutos de consultório ter uma formação de opinião sobre saúde. Essa história de CONSULTE SEU MÉDICO pra tudo gera um misticismo sobre doenças e remédios, como se fosse só parar na oficina e seu corpo sair novinho, pronto pra mais 100 anos de podridão. Talvez um dia.
Por enquanto, é necessário conscientizar todo mundo de que VIDA se deve levar pra evitar aparecimento e complicações de doenças comuns. Qualquer um sabe que cigarro faz mal, mas esta idéia vaga não dá liberdade de escolha real. Dá câncer, mas quase ninguem sabe o que é câncer. Saber que mata não é o bastante, se vamos morrer de uma forma ou de outra. Além disso, morrer é a parte mais fácil dessas mazelas todas, o problema é o caminho até lá. Tigres sofrem um bocado.
2) Nisso de conscientizar, o médico tem as mãos atadas. Além de ter pouquíssimo tempo no amontoado de pacientes que tem de atender, seja por lucro ou por demanda local, ele lida com adultos, o que estraga de vez o resultado. Adultos não se convencem de nada. Sou o mais cabeça-aberta dos que conheço e demorei quase 5 anos pra virar socialista, mesmo com doses diárias de injustiça social aonde quer que eu fosse em São Paulo e amigos tentando me explicar. Sim, acredito que adultos podem mudar radicalmente de opinião, mas a um custo de tempo e retórica totalmente inviáveis em larga escala. Quem tem que aprender sobre o mundo são as crianças.
E novamente não pelo médico. Quem tem tempo de estabelecer um canal de comunicação de confiança com os pequenos é o professor, o ambiente escolar. Entendo que o currículo escolar tem seus usos, porém é totalmente desligado da vida real. Eu gosto de saber distinguir distância, velocidade relativa e aceleração quando estou num veículo. Mas a escola deveria ensinar conteúdo mais pragmático, como cuidar da própria saúde, política atual e seus motivos, legislação, culinária, ensinar a realidade da cidade e do campo, formar um adulto. Seriam coisas muito mais úteis agora, do que reconhecer o filo da água-viva (por mais interessante que seja)... Acaba sendo uma questão mais ampla, da função social da escola. Enquanto a escola está ensinando terciarismos, quem “educa”(e tortamente) pra vida é o desenho animado, o rambo, o DATENA!
Há um cuidado em não falar muito de realidade com a criança, pois é jovem e inocente. De que adianta formar um bocó de 18 anos que em 5 minutos de realidade muda todos seus conceitos de vida? A criança precisa ver que tem gente passando fome, que o dinheiro acaba, que doença e cigarro mata com sofrimento, saber quem planta a comida e quem queima a comida pra subir o preço. Quase todos adultos de hoje teriam de ser re-alfabetizados num sistema desse. Não é nem questão de melhorar a saúde da população, estamos falando da saúde da sociedade mesmo.